RESSACA DOS RESSENTIDOS

Andre Alves
5 min readOct 4, 2022

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o que o fortalecimento do bolsonarismo e da extrema-direita nos diz sobre o inconsciente coletivo do Brasil dos anos 2020?

Dado Galdieri para NYTimes

fomos pegos de surpresa, mais uma vez. Ricardo Salles teve o dobro dos votos da Marina Silva. os ministros da morte (e não da saúde), da ignorância (e não da ciência), da normatização compulsiva (e não dos direitos humanos)…todos eleitos. e o deputado federal mais votado do país é antivacina e pró-cyberbullying, bolsonarista de livro — que, aliás, escreveu um livro chamado “o cristão e a política”. é interessante pensar que, há quatro anos, estes personagens sequer existiam. mar revolto, ranger de dentes.

a verdade é que, enquanto formávamos a base que extrema-direita já tinha e discutíamos voto impresso, a boiada passou. e passou maior. se em 2018 o sintoma nacional chegou ao poder, no último domingo, transbordou. como o cientista político Jairo Nicolau falou ao ‘Nexo’, o bolsonarismo de 2022 é mais potente. as teorias conspiratórias foram institucionalizadas e o núcleo duro está eleito. o Thomas @traumann também fez análises muito boas no Assunto junto da @renataloprete .

o bolsonarismo, insisto, é um movimento revolucionário. uma máquina que só vai parar quando todo e qualquer progresso social dos últimos 20 anos tiver sido desfeito. o governo atual coleciona atrocidades, mas Bolsonaro foi mais votado inclusive em cidades em que se morreu mais gente na pandemia. saímos dos limites da razão há muito tempo. portanto, esmiuçar o que está nas profundezas do inconsciente coletivo é fundamental.

a hipótese ressentida parece nunca ter feito tanto sentido. o ressentimento é uma paixão triste que diminui a potência de agir do sujeito. o ressentido sacrifica sua condição desejante em prol de uma moral externa. como escreveu a Maria Rita Kehl, o ressentido não banca o desejo; serve a uma imagem de perfeição que busca projetar.

domingo não vimos “só” a ampliação do bolsonarismo, mas sobretudo do projeto de cidadão de bem. do brasileiro supostamente cordial que está disposto a matar em nome da norma. o cidadão de classe média que não suporta a diferença, nem interna e nem externa.

internamente, o ganho é duplo. para não ter que sustentar sua divisão subjetiva, o ressentido escolhe culpados e inimigos. ataca e agride ao mesmo tempo que se declara vítima. essa é a história do homem mais poderoso do país que se diz impossibilitado de governar.

externamente, o ressentido vinga-se de quem ameaça sua posição. para o filósofo búlgaro Tzvetan Todorov, a eleição de Hitler na Alemanha foi movida à frustração de uma classe média espremida entre a burguesia e o proletariado durante a inflação dos anos 1930. o ressentimento das classes decadentes.

no Brasil pró-extrema-direita de 2022, o cidadão de bem não enxerga a fome, só enxerga fracassados que merecem a pobreza. ele não, ele venceu; e se não está vencendo, os culpados devem ser punidos: as instituições, a mídia, os esquerdistas e inclusive os famintos. para este cidadão, o absurdo não é a desigualdade, mas qualquer medida para diminuí-la. o ressentido cidadão de bem enxerga a terra arrasada como a terra da mamata. pura ética do “quem mexeu na minha picanha?”.

a entrevista do presidente Bolsonaro pós-primeiro turno talvez tenha sido um dos momentos mais reveladores desse personagem. por baixo da carapaça raivosa e escandalosa do bolsonarismo, há o Seu Jair. um senhor cansado, meio vitimizado, que até pede pro outro falar baixo, e que “só” quer proteger a sua família, cuidar desde que seja mais cuidado. e Seu Jair tem muita noção de onde quer chegar, com toda a frieza da cordialidade em prol da destruição.

são ares paranóicos do temor de que o governo se intrometa na vida do cordial cidadão de bem, leve ainda mais do que já leva. uma torção sedutora do discurso libertário. não é mais só “o PT acabou com a minha vida”, mas o sistema político inteiro, todas as instituições. o Brasil acabou com o Brasil e, portanto, em nome do Brasil, vamos acabar com vários Brasis.

como diz a Isabela Kalil, Bolsonaro não inventou a extrema direita. mas foi hábil em empacotá-la e vendê-la para as massas. fascismo on-the-go. existiu um tempo em que esse perfil era ⅓ da população; este tempo passou. no último domingo, a extrema-direita deixou de ser uma fase. não é onda, é estrutura. e como vem nos alertando a Michele Prado, a tempestade ideológica apenas começou.

Marcos Nobre fez uma fala excelente na live da Piauí, aliás. e nos deu conselhos valiosos. primeiro, paremos enfim de subestimar Bolsonaro. consolidação da base, aumento da rejeição de Lula, estelionato eleitoral…tem estratégia e ela funcionou. e o Bolsonarismo não esta acuado e nem acabado; a posição “diminuída” é a que esse movimento joga melhor — estilo david VS Golias, o capitão VS o sistema.

segundo, a postura “já ganhou” tem que dar lugar a uma luta consciente e menos orientada pelo pensamento mágico. Lula teve o maior número de votos que já conquistou em um primeiro turno, mas Bolsonaro também. aliás, o cientista político Fernando Meireles fez uma ótima comparação de Bolsonaro em 2018 VS 2022.

terceiro, o que está em jogo é o futuro da democracia no Brasil e também no mundo. é sobre evitar uma ditadura que, na cartilha ultradireitista, se instala no segundo mandato. essa é a história de um Brasil que gostaria de ser Miami, mas que está na rota de se tornar a Hungria. até porque parte dos EUA também caminha para a hipótese húngara.

quarto, mas não é hora de sucumbir à depressão cívica. e a estratégia de berrar “voltem para o esgoto” não vai dar certo. as alianças políticas e eleitorais serão necessárias, ainda que nos custem caro. mas sem elas, não teremos alternativa.

não será apenas sob a bandeira do amor e do resgate que iremos para frente. o empuxo à destruição cordial é delirante, mas é também a única alternativa antissistema ou de reforma do sistema claramente ofertada às pessoas. nenhuma força politica ofereceu algo parecido. mais do que nunca, precisamos de projeto de um novo país. um país que precisa lidar com suas desigualdades; do contrário seguirá produzindo sintomas sociais mortíferos. como muito bem lembrou o Viny Rodrigues, a esquerda precisa voltar a ser mais esquerda.

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Andre Alves

escritor, psicanalista, consultor e pesquisador na @floatvibes, hub de cultura, comportamento e estratégia. e apaixonado por chás @realmrtea.