quando um líder perverso encontra um povo com tendências sociopatas

Andre Alves
6 min readApr 3, 2021

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foto por reflektory

semana estranha, aniversário do golpe militar e a internet convulsionando “não vai ter golpe”. de novo. “democracia frágil”, cenário instável, muitas interpretações possíveis. mas pra mim o o Brasil é um laboratório. e atualmente vivemos um experimento psicossocial dos mais complexos.

aeroportos cheios e estradas lotadas, festas clandestinas, corredores e ciclistas aglomerados e sem máscara. no Brasil parece que a gente gosta mesmo é de colecionar absurdos. enquanto isso, o genocida desmascarado vai passando (e matando) a boiada. o Brasil de hoje é o que acontece quando um líder perverso encontra um povo com tendências sociopatas.

simplificando bastante, sociopata é quem tem dificuldade de sentir empatia, quem não consegue entender os sentimentos do outro, e que também costuma quebrar as regras sem sentir culpa. claro que o brasileiro é um povo muito social e sociável mas, no limite, o sociopata é também aquele que não respeita a lei.

na psicanálise, uma das etapas mais fundamentais da nossa formação é a introjeção da lei, quando entendemos que a vida não é “porque eu quero” ou “porque papai/mamãe mandou”. a lei existe para todes, inclusive para nossos pais. mas o pacto social no Brasil é frágil e está sempre por um fio.

como escreveu o psicanalista Hélio Pelegrino em Pacto Edípico e Pacto Social, “a ruptura com o pacto social, em virtude de sociopatia grave — como é o caso brasileiro — pode implicar a ruptura, ao nível do inconsciente, com o pacto edípico.” nesse quadro desastroso, tudo aquilo que ficou reprimido em nome do pacto, vem à tona, sob forma de conduta delinqüente e anti-social. é uma certa regressão, como se cada um fosse novamente uma criança que faz o que quer “porque eu quero!”.

“é mais honrado — e menos perverso — ser delinqüente fora da lei, do que sê-lo em nome da lei, acobertado e protegido por ela. o acanalhamento da lei, a corrosão dos ideais que justificam a vida, o aviltamento do trabalho humano, centro do processo civilizatório a idolatria à segurança nacional.” — Hélio Pellegrino, Pacto Edípico e Pacto Social

essa regressão parece ir mais longe ainda quando o pai-mito-messias tenta ser a lei, confunde-se com O poder, “meu exército não faz o que eu não quero”. o perverso sabe da existência da lei, mas tem certeza de que ela não se aplica a ele. o perverso é insuperável, imbatível, nega qualquer limite, nega até mesmo a morte.

resultados? resumindo bem, para uns temos adoecimento e apatia, “não deu certo mesmo e é isso aí”. enquanto outros seguem esse líder de forma descabida e cega, uma adoração de quem está disposto até a morrer por esse pai. e de forma geral, há ainda uma relativização da lei e as regras tornam-se sujeitas a interpretação pessoal.

por outro lado, o psicanalista Christian Dunker pede cautela em sentenciarmos pessoas públicas com diagnósticos que deveriam se manter na intimidade de uma análise. sem falar na perigosa politização das patologias. Dunker inclusive acredita que Bolsonaro não seria um perverso, mas algo pior, uma criança mimada:

“não acho que uma criança mimada seja menos perigosa que uma sociopatia. uma criança mimada com poder é o pior que a gente pode produzir. porque nem um plano independente ela vai ter. ela vai pisar nos outros, machucar todo mundo e achar que está sendo amada por todo mundo e vai ser recebida no céu. é gravíssimo, mesmo não sendo uma patologia. uma criança é alguém capaz de se limitar, enquanto um sociopata tem medo de ser pego, mais impulsivo e explosivo. (…) Bolsonaro não é um perverso. e acho que a perversão não merece Bolsonaro; Bolsonaro é muito mais simples e pior do que é isso.” — Christian Dunker

por isso mesmo, vale refletirmos em um sentido mais amplo. como escreveram os também psicanalistas Noemi Moritz Kon e Thiago Majolo ano passado no El País, o Estado perverso, violento e intolerante também somos nós:

“se a perversão à brasileira se apoia nesse traço de caráter forjado em nossa história, ou na falta dele, em que as Leis comuns se diluem em uma miríade de leis particulares, devemos reconhecer que nossa perversão se alimenta dia a dia de terríveis hábitos cotidianos públicos e domésticos naturalizados. Nas casas, nas escolas, nas empresas, nos ofícios diversos nos deparamos todos os dias com o pior de nós mesmos, com o torpe, o vil, o infame, espelhamos, assim, instituições públicas, — federais, estaduais, municipais e de bairro — , e privadas, que fazem de tudo para se perpetuar no poder, custe o que custar, custe a quem custar. Nosso perverso e abjeto presidente da República tem seus duplos, seus avatares macabros, nos governadores, prefeitos, ministros, secretários, síndicos, diretores, pais, filhos e amigos milicianos.” — Noemi Moritz Kon e Thiago Majolo, O que podemos diante dos perversos?

para selar esse pacto mortífero, um tsunami de afirmações em massa do otimismo acrítico, embalado por fantasias como “tratamento precoce”, “7 motivos para ser otimista” e outras receitas que prometem resolver uma das maiores tragédias dos últimos séculos com um post. uma dança com a morte em prol de “não deixar de viver”. é como se topássemos qualquer projeto de destruição, desde que tenhamos de volta os passeio ao sopping e a mesa de bar. como sentenciou o Tales Ab’Sáber na Cult, “a morte é festa no Brasil de Bolsonaro”.

“Bolsonaro não precisou de muito trabalho e de nenhuma energia especial para empurrar pessoas para viverem aquilo que, contra a real realidade da doença e da morte, elas de fato queriam viver. Entre o líder fascista, sua lógica cruel anti-humanista neoliberal, que deseja desresponsabilizar o governo do trabalho coletivo e social, e a ordem comum e repetitiva dos gozos contínuos do mercado e da imagem mercadoria comum no mundo, há também uma continuidade eletiva forte. O mercado que se celebra em cada compra e em cada venda de uma ilusão qualquer é também exatamente o mesmo que faz o elogio de um mundo sem governo, sem compromisso social e com o trabalho, ou qualquer coisa que exista para além da mercadoria, do dinheiro e de si próprio.” — Tales Ab’Sáber

o balanço final (tem fim?) de tudo isso é que a gangorra entre mentalidade individual e coletiva nunca ficou tão exposta como nos tempos pandêmicos. e parece que a ideia perversa e antiga do “Brasil não deu certo” foi potencializada por falas como “o povo não respeita” e “o brasileiro não está nem aí”. impossível não conectar essas frases com os sonoros “e daí?!” do presidente da república. essa decepção generalizada com o coletivo nos impede de vislumbrar outras realidades. e nos jogos de ultrapolarização, gravitamos entre a rivalidade e o desamparo.

mas a fé no coletivo talvez seja nossa única esperança. precisamos mantê-la, até porque nós merecemos a esperança. como disse muito bem o psicanalista Lucas Liedke no Café da Manhã da Folha, “não uma fé alienada e negacionista, mas uma fé no coletivo. a gente tem que voltar a conseguir confiar no outro se queremos passar por tudo isso.”

algumas referências para aprofundar a discussão:

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Andre Alves

escritor, psicanalista, consultor e pesquisador na @floatvibes, hub de cultura, comportamento e estratégia. e apaixonado por chás @realmrtea.