O Eu (Ideal) Anabolizado

Andre Alves
9 min readMay 8, 2021

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Incontáveis textos com fatos curiosos sobre sua personalidade, stories do seu café da manhã no Instagram, textões com suas opiniões no Facebook, vídeos no TikTok em que você experimenta diferentes peças de roupa e joga os calçados para cima. Vivemos em uma Cultura na qual é tudo sobre você. Ou melhor, sobre o Eu.

A caixa de texto inicial do Facebook pergunta ao usuário “no que você está pensando?”, enquanto o Twitter interroga “o que está acontecendo?”. Em tempos digitais, parece que grande parte da internet gira ao redor da opinião do sujeito — e da necessidade de ter sempre algo a dizer sobre si mesmo. Se Sartre sentenciou que o inferno são os outros, parece que, no contemporâneo, o inferno é o Eu.

A internet pode não ter criado novos sofrimentos, mas é possível levantar a hipótese de que agravou sintomas e também renovou e atualizou alguns traços de estruturas psíquicas. Nesse contexto, há uma aparente relação entre o aumento das horas online e o crescimento dos números de casos de depressão e ansiedade, entre outros males psíquicos. A ironia é que, por maior que seja o mal-estar coletivo na modernidade, a internet parece ter dobrado a aposta da Cultura na performance da felicidade.

“Fake it till you make it” conta agora com infinitos filtros, deep fakes e outras formas de refinar esta performance. Mas por mais imersivos que sejam os infinitos recursos de distração e manipulação, os sintomas insistem. Nesse sentido, será que as redes estão escavando as feridas narcísicas do sujeito?

Todo mundo precisa de um pouco de narcisismo

O processo de constituição de um sujeito é uma grande jornada. Ao contrário do que diz o imaginário popular, Freud foi categórico ao afirmar que “uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido”. Esse desenvolvimento é um verdadeiro campo de batalha, começando pelo fato de que o sujeito nasce como objeto do desejo do outro.

Nesse caminho, o bebê é atravessado pelo narcisismo primário como uma forma de constituir a imagem do seu próprio corpo, além, claro, de unidade psíquica. Como elucidou Lacan, o sujeito não é indivíduo exatamente porque é marcado pela divisão consciente/inconsciente. A grosso modo, não é uno, é duo. E nada disso acontece sem o narcisismo.

Narciso talvez seja mesmo a história mais triste já contada. Narciso seduziu-se por esse mecanismo tão complexo e tão básico. E quem poderia culpá-lo?! Como na versão do mito (re)escrita por Oscar Wilde, o lago sente a falta de Narciso não por sua beleza, mas porque no fundo dos olhos de Narciso conseguia ver a sua imagem. Ou seja, o narcisismo é universal e todos precisamos jogar esse jogo, com sorte.

Se tudo der certo, uma criança encerra seu desenvolvimento em um estado neurótico, intuindo que não é mais o objeto perfeito na fantasia do outro e que não pode fazer tudo o que quer. Mas esse suposto desfecho não significa que a guerra está ganha e a verdade é que o ego irá lutar para sustentar uma unidade psíquica relativamente equilibrada e coesa até a morte.

Na célebre frase “o Eu não é senhor em sua própria morada”, Freud condensou o paradoxo do Eu cindido. Se o Eu serve a “três tirânicos senhores (que) são o mundo externo, o superego e o id”, é claro que sustentar a subjetividade pode tornar-se uma tarefa hercúlea. Pode até dar para integrar os vários aspectos da personalidade, mas os sujeitos seguirão sendo partidos.

Talvez essa seja uma das maiores libertações que a Psicanálise oferece ao sujeito contemporâneo — ter a sua própria subjetividade (conquistada na modernidade) e não restringí-la a uma unidade. No limite, pode ser uma forma de aceitar o conflito com o outro e consigo mesmo. Paradoxalmente, a Cultura não parece disposta a abrir mão da ideia de unidade, de que cada um tem um núcleo sólido como a semente de um pêssego, um ideal que é manifestado através do discurso “seja você mesmo”.

O mito da autenticidade

A autenticidade é um dos ideais mais fetichizados na atualidade. Na definição mais comum, autêntico é o que é genuíno, real, que não é falso e nem copiado; tem uma fonte de verdade. O perfil público de rede social que tem o selo de “verificado” é um excelente símbolo dessa mentalidade, como se uma persona online tivesse passado por um processo de autenticação, uma validação escrita em uma entrelinha digital que nos leva a acreditar que ali, naquele perfil, encontraremos um sujeito que diz o que se é.

Autenticidade é um conceito-chave para uma mentalidade mercadológica em que propriedade é o conceito central. É a premissa básica para justificar o valor de um determinado produto. Se é autêntico, é mais caro. Mas o capitalismo é traiçoeiro, e os séculos de mercantilização, inclusive de pessoas, fizeram com que o que era critério de seleção se tornasse ferramenta de identificação. E, de certa forma, de negação da fragilidade do ego.

Nem todo sujeito aceita não ser a encarnação da perfeição, nem todo sujeito topa não ser a fonte de atenção e prazer por tempo indeterminado. Afinal, o sentimento intenso de onipotência que prevalece nos estágios iniciais da vida é poderoso, como descreveu Melanie Klein. Assim, como anjos caídos, muitos sujeitos vão tentar resgatar esse lugar através de uma estratégia ousada: tornar-se seu próprio ideal. Só que esse ideal se inflou — não basta ser um Eu Ideal, é preciso ser um Eu Ideal autêntico, sedutor e, claro, indestrutível.

O Eu (ideal) anabolizado

A internet potencializa um estranho casamento entre “eu me basto” e um senso moderno de bem-estar, onde o importante é estar bem consigo mesmo, acreditar no seu potencial, ser de bem, positivo, good vibes. Nessa chave, o sofrimento do mundo torna-se energia negativa e as críticas ao sujeito são interpretadas como ataques invejosos, tentativas de destruir a autoconfiança que foi conquistada a duras penas.⁣

O jogo fica ainda mais sério em um contexto no qual a personalidade tornou-se uma valiosa commoditie. Entre Kardashians e Trumps, uma identidade pode render likes, recebidos, contratos, dinheiro e poder. O “I” de internet é realmente sobre o pronome “I” da língua inglesa. E o saldo final dessas transações é uma Cultura em que o Eu (Ideal) foi anabolizado, intoxicado pela positividade, crente que coisas, pensamentos e conteúdos positivos são a chave para eliminar a angústia.

“A autenticidade é uma forma neoliberal de produção. Você se explora voluntariamente na crença de que está se realizando. No culto da autenticidade, o regime neoliberal se apropria da própria pessoa e a transforma em um meio de produção altamente eficiente. A pessoa inteira é incorporada ao processo de produção.” — Byung-Chul Han, O desaparecimento os Rituais

A compulsão da autenticidade leva à introspecção narcisista, uma ocupação permanente com a própria psicologia.O narcisismo hiper-dilatado contrasta com um senso atrofiado de realidade. E a internet torna-se uma grande EgoVila, cujos habitantes lembram distorções da personagem ficcional da madrasta da Branca de Neve, interrogando o espelho sobre a existência de alguém mais belo e equilibrado do que (o) Eu. O problema é que o algoritmo desse espelho revela infinitos recortes de vidas mais perfeitas e otimizadas. Mais exemplos do que o sujeito consegue suportar. Esta insistência na reafirmação do Eu (ideal) é também sucumbir à sedutora ideia de que o Eu pode ser imbatível.

Um ego perfeito pode parecer um diamante inquebrável, mas a verdade é que é um cristal frágil, pronto para se esfarelar como areia. Um eu perfeito pode parecer um espaço amplo para “ser você mesmo”, mas as paredes desse quarto vão se fechando até que não caiba mais ninguém ali além do sujeito. Quanto mais altas as muralhas do Eu, mais alienado fica esse sujeito e menos consegue-se ver o que e quem está lá fora. Daí o outro vira plateia e, pior, quando oferece muito conflito, uma ameaça. Na matriz capitalista consumista altamente invejosa, a competição com o Eu Ideal nunca termina. ⁣E o efeito colateral da estratégia de fortalecimento do ego é o enfraquecimento do sujeito.

A vulnerabilidade da performance

Esta montagem vai se tornando ainda mais cara e difícil de sustentar. Especialmente quando essa performance é intencionalmente desenhada para a validação alheia. E novamente a internet potencializa o problema. Se subjetividades analógicas performaram para um grupo restrito de pessoas e em determinadas situações, hoje o Eu Ideal está sujeito ao olhar de centenas, milhares, dezenas de milhares de outros. Só que performar para todos o tempo todo é sufocante. Remontar o Eu todos os dias condena o sujeito a infinitas camadas de “deveria”, “gostaria” e “seria”, banquete para uma Cultura cada vez mais neurótica.

Tudo isso faz com que o sujeito contemporâneo fique preso em um impasse. Por um lado, é incapaz de abandonar a sedutora possibilidade de reconstruir continuamente um Eu Ideal que será supostamente amado pelas massas. Por outro, também há uma vontade de desconstrução desse modelo perfeito — e inalcançável — sob o discurso de valorização da vulnerabilidade. Esse ideal entra na Cultura como uma tentativa de desconstruir, mas também de facilitar a construção da cena narcísica, um lembrete de que é possível se identificar e obter satisfação com ideais parciais, qualidades que não precisam estar concentradas em um mesmo sujeito. É mais sobre bancar os ideais (de Eu) do que insistir na totalidade do Eu ideal. Mas como tudo que existe em uma sociedade neoliberal, o mercado se apropria do discurso e esvazia o significado. No balanço final, o discurso da vulnerabilidade vira mais um artifício para vender xampus.

Como na imagem do estádio do espelho de Lacan, as redes sociais causam ilusões óticas. Nos fazem acreditar que são um espelho plano que projeta uma imagem refletida perfeita do outro lado. Mas na verdade é uma infinidade de espelhos côncavos, distorcendo e mudando as imagem de acordo com a posição do sujeito — e dos milhares de outros.

O espelho é um processo fundamental para que um sujeito entenda que 1) é alguém e também é 2) mais do que a soma de suas partes. O truque é que o sujeito vai precisar do olhar do outro nesse jogo especular. O outro vê a minha imagem e eu me identifico com o que é visto. Em teoria, o estádio do espelho é uma etapa do desenvolvimento infantil, mas os dilemas da performance online parece uma reprise diária desse processo.

O que sobra? Fragmentos de Eu espalhados pelo chão que têm de ser recolhidos e colados diariamente para ver se, quem sabe, a imagem do dia agrada alguém. É exaustivo para o sujeito, ainda que muito lucrativo para algumas instituições. É um espetáculo digno de likes. Como afirmou Christian Dunker no vídeo A Cultura da Indiferença, “onde isso vai levar? numa multidão de indivíduos solitários, uma multidão de indivíduos que não conseguem sair de seus próprios espelhos, que levam vidas que são mera reposição de si mesmos.”

Até dá pra sustentar aquela ideia antiga de não precisar de ninguém, mas não por muito tempo. Por mais sozinha que seja a condição do ser e por mais sedutor que o discurso de independência radical possa parecer, sempre precisamos do outro. Como escreveu Lacan, “é no outro que o sujeito se identifica e mesmo se experimenta no início”. Ou seja, não tem como escapar do outro e nem do eu. O alívio é que nem o eu e nem o outro são uma coisa só.

Nesse contexto, a pergunta que fica é: como sair da bolha de iguais para lidar com as diferenças? E, claro, dá pra levar a sua autoimagem menos a sério? Se a dor do mundo nos afeta, a psicanálise é uma forma de suspender momentaneamente a concepção de unidade que temos de nós mesmos. E assim, fazer alguns ajustes, ter um respiro para deixar o Eu voltar a trabalhar. É uma ponte para atravessar a fantasia de que é possível ser um sujeito imbatível e inquebrável. Mas sem esquecer que a angústia sempre volta — nunca foi embora, por mais eficiente que seja o filtro de beleza da semana.

Trabalho selecionado para o Colóquio Interno do Centro de Estudos Psicanalíticos no primeiro semestre de 2021. O texto original foi escrito junto com Lucas Liedke e um resumo foi publicado no relatório Saídas de 2020 feito pela float, um hub de Cultura, Comportamento e Estratégia.

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Andre Alves

escritor, psicanalista, consultor e pesquisador na @floatvibes, hub de cultura, comportamento e estratégia. e apaixonado por chás @realmrtea.