LIBERDADE de AGRESSÃO e o VIBISMO POLÍTICO

Andre Alves
8 min readOct 26, 2022

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FRANKLIN DE FREITAS_2018

na batida da violência, da mentira e da canalhice, sobram absurdos e falta sentido. mete bala, granada neles — fim de eleição com notas de fim de mundo. nesses dias de muita guerra e pouca glória, a máxima “o Brasil não conhece o Brasil” nunca fez tanto sentido. meio apavorados e meio indignados, números e imagens do absurdo seguem se empilhando no ritmo da boiada, muito além da nossa capacidade de elaboração. enquanto isso, uma pergunta antiga paira no ar: que país é esse?

a música do final dos anos 1970 parece uma síntese do Brasil dos anos 2020. mas antes de respondermos “é a p*rra do Brasil”, talvez pudéssemos sustentar a pergunta. pergunta ainda mais difícil em um país sem Censo Demográfico desde 2010. um país que prefere falar das granadas e não da fome, que fabrica fraudes, que opera na lógica da arruaça e do golpe nosso de cada dia. um país que fala em criminalizar pesquisas mas elege quem “ouviu na rua”, das infinitas barbáries em nome do Senhor. o país da anticorrupção, do estelionato eleitoral e do maior esquema de corrupção institucionalizada do planeta. o país cujo ministro da saúde fez Manaus de laboratório e dava festas no ápice das mortes na pandemia, como retratou sua ex-esposa recentemente. afinal, que Brasil é esse?

a narrativa da guerra de narrativas

faz tempo que não estamos falando de duas ideias de país. a ideia de polarização é insuficiente, até porque produz premissas distorcidas e falsas equivalências. por baixo do suposto embate de duas narrativas, temos mais hipóteses ocultas de Brasil. nesse sentido, um caso que pode nos ajudar a dar sentidos: em 2018, surgiu nos EUA um estudo chamado The Hidden Tribes of America (as tribos escondidas da America).

a pesquisa com mais de 8000 pessoas nos EUA concluiu que as orientações, valores e identidades políticas eram mais complexas que vermelho VS azul. a população então poderia ser dividida em 7 grupos, como Progressistas Ativistas, Liberais Passivos, Conservadores Tradicionais, Conservadores Devotos e outros agrupamentos. o grande achado do estudo, na minha opinião, é que os segmentos tem divergências nos fundamentos da realidade social, uma fratura profunda na narrativa americana, como sete nações dentro de uma.

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multiversos políticos

para além de sonhar dublado, a lógica das tribos ocultas ajuda a pensar como as narrativas em curso estão profundamente ligadas às identidades. e para defender identidades, vale tudo. vale mentir, subornar, intimidar, romper e, sobretudo, agredir. o debate político virou ringue, “brigar por política”. não é por acaso que as eleições ganharam tom de guerra santa. não é embate de visões, é guerra de narrativas.

uma guerra que não se sustenta no embate de duas visões, mas sim com múltiplas narrativas que atendam a grupos diferentes, como manda a cartilha Cambridge Analytica da política das redes. tudo isso importa porque o Bolsonarimo, como grande parte dos populismos digitais, joga nessa lógica. é assim que dá pra ser cristão e pró-armas, presidente e anti-sistema, contra corrupção e pró-orçamento secreto, vítima da facada e imbrochável. o Bolsonarismo não é só uma força política, é um multiverso. é um conjunto hipotético de universos possíveis e, como o multiverso, é uma grande obra de ficção.

como escreveu o Thomans Traumann recentemente, o marketing eleitoral (e a ciência política) prega o teorema do eleitor mediano, no qual 2 candidatos de lados ideológicos opostos geralmente disputam o centro. mas Bolsonaro está jogando os manuais no lixo, conquistando o eleitor médio sem nenhuma promessa de moderação, compromisso democrático ou responsabilidade fiscal. não é sobre coalização, é sobre relativismo cognitivo. você acredita na parte que lhe cabe, naquilo que combina com a sua narrativa e ressoa com a sua identidade, que te faz vibrar como você gostaria de vibrar — uma cultura política baseada em vibes.

como aprofunda o Rodrigo Nunes no excelente Do transe à vertigem, são diferentes matrizes discursivas, diversas condições afetivas, além de uma estrutura organizacional que passa por igrejas, emissoras de TV e rádio, empresas, influenciadores, robôs. e como vem dizendo a Isabela Kalil, o maior feito do bolsonarismo foi ter conseguido articular militarismo, anti-intelectualismo, empreendedorismo, anticomunismo, libertarianismo econômico, discurso anticorrupção, conservadorismo social em torno de uma única figura: o “cidadão de bem”.

nada corrompe o cidadão de bem, nem mesmo uma bad vibe. até porque, quando se é “do bem”, vale até fazer um pouco mal, vale tudo. de acordo com essa lógica, mudar de opinião é natural, afinal tudo é uma vibe e nada é real. Bob Jeff não é um criminoso aliado nuclear do presidente; Bob Jeff foi uma vibe errada que já passou. como a pandemia nos mostrou, tem gente disposta a morrer para não mudar a vibe. como eternizou Maya Angelou, “as pessoas podem não lembrar exatamente o que você fez, ou o que você disse, mas elas sempre lembrarão como você as fez sentir”.

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relativismo cognitivo

nesse cenário, faz sentido que a confiança total nas falas do presidente chegue a 27% dos brasileiros (Datafolha). há narrativas e ambiguidades suficientes para atender a ⅓ da população. a ironia é que, mesmo com tanta tecnologia, a gente habite mesmo uma Era de (Des)Informação. mas como disse o Rodrigo Nunes (do excelente Do transe à vertigem), colocar a conta de tudo isso nas fake news é um certo negacionismo da esquerda liberal.

partes do Brasil são manipuladas, de fato, mas é chegada a hora de abandonarmos a visão romântica do eleitor democrático. primeiro, porque os grupos que mais transmitem fake news no Brasil são educados, informados, e repassam desinformação por excesso de identificação. como disse o Wilson Gomes, professor da Universidade Federal da Bahia, no Cafe da Manhã da Folha, é um sujeito que não quer informação verdadeira, mas consoante, quer evitar uma dissonância cognitiva que faz ele sofrer. mais uma vez, é profundamente narcísico.

como disse o Christian Dunker no Intercept, “o discurso bolsonarista é muito eficaz, apesar de pouco verdadeiro. mas ter um discurso verdadeiro não vai mudar a eficácia dessa relação comunicacional”. nesse sentido, precisamos abandonar de vez a falsa crença de que as pessoas foram enganadas e que basta esclarecê-las para que voltem ao seu “estado de funcionamento normal”. as pessoas realmente acreditam no que estão fazendo e nos projetos de Brasis que desejam. muitos eleitores vêem a democracia em perigo, mas salvá-la não é uma prioridade de todos.

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que voto é esse?

a política brasileira é tradicionalmente regida pela máxima do “votar no menos pior”. mas parece que estamos diante de outra força, algo que talvez ainda não sejamos capazes de nomear. como escreveu a Eliane Brum no El País, “o fenômeno político de votar pelo pior sabendo que eles são os piores”, eleitores que votam contra os Brasis adversários. em partes, é também uma lógica punitiva para castigar partes da sociedade que votaram no PT ou acharam que poderiam ter acesso a direitos. “vai repetir o erro? então toma”. é o síndico que coloca os funcionários do prédio que votam em Lula para trabalhar no final de semana, a chefe de RH que ameaça demitir eleitores do PT, entre tantos outros casos de assédio eleitoral.

essa é a história de brasileiros que odeiam os Brasis, de quem só consegue sustentar o vínculo com a ideia de nação através do ódio. de quem vota na chave destrutiva da pulsão de morte, do que há de mais violento dentro de todos nós, da vontade de ver mesmo o circo pegar fogo. é o voto do “meter o louco”. para uns, apertar o botão da urna é um apelo, parra outros é uma defesa, e para alguns é mesmo um gatilho. esse é o voto da liberdade de agressão. um voto que convive com votos ressentidos, votos esperançosos, votos envergonhados. lembrando sempre que o psiquismo é dinâmico e que geralmente ocupamos mais de uma posição ao mesmo tempo.

seria ingênuo colocar tudo isso na conta da extrema direita brasileira, colocar o mal fora, não admitir que, entre janonismos e militâncias, não estaria também o campo da esquerda mergulhado na liberdade de agressão. mal temos conseguido discutir esse assunto. é fato que, como escreveu a Vera Iaconelli na Folha, as palavras do presidente escancaram essa caixa de pandora. a questão histórica que se coloca é se queremos dobrar a aposta nessa retórica — ou mesmo rever as relações comunicacionais.

a questão é que todos esses afetos estão mobilizados. e não vai adiantar desprezar, “nem perder tempo com essa gente”, ou mesmo empurrar esses Brasis para baixo do tapete do recalque. muito menos fingir que uma eleição pode costurar um tecido social em frangalhos. tratar desse sintoma e escutar essas demandas vai dar muito mais trabalho do que a gente pensava. como lança Francisco Bosco em sua ambiciosa hipótese, é preciso desinflamar o debate. conseguir articular e rearticular a agressão, mas mobilizar outros afetos, outras vibes. o diálogo só será possível com o reconhecimento de que nenhuma posição é total e absolutamente verdadeira.

mas para além da gritante necessidade de elaboração, precisamos localizar melhor o que precisa ser elaborado, o que está dando cada vez mais trabalho para recalcar e que tem tido vazão através de uma posição altamente paranóica mobilizada pelo medo e pelo ódio. se humanos são muito bons em esquecer para se proteger, o Brasil parece um experimento dos limites da capacidade de recalque. ou uma espécie de recorde global do retorno do recalcado. da escravidão à pandemia, vamos colecionando conteúdos traumáticos encobertos.

por tudo isso, precisaremos mesmo de muita coragem de enfrentar e desbancar os tantos delírios que usamos até aqui. que sabe assim, com muita sorte e trabalho, conseguimos manter no ar duas questões viscerais: que país fingimos não ser e que país vamos ser?

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Andre Alves

escritor, psicanalista, consultor e pesquisador na @floatvibes, hub de cultura, comportamento e estratégia. e apaixonado por chás @realmrtea.